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sábado, setembro 15, 2007

A Intolerância

“Intolerância”, o filme, é de 1916. Dirigido por David Wark Griffith como resposta ao intolerante “Nascimento de uma Nação” (de 1915, quase uma ode à Ku Klux Klan), a obra é um chamado histórico ao fim do preconceito, um chamado ao nascimento de uma nova era, livre de julgamentos por cor, raça ou credo. Afinal, todo preconceito é iletrado, irracional, ignorante. Burro mesmo. “Intolerância”, o substantivo, é dos dias hoje, do século – quem diria, XXI. Esta obra teve uma criação coletiva. Nada mais justo que todos nós – homens modernos, com acesso ilimitado à informação e cultura – lutemos agora pela sua destruição coletiva. Está em nossas mãos.

É triste e decepcionante ver que apenas poucas pessoas estão dispostas a percorrer essa estrada, talvez mera picada, já tomada pelo mato do descaso, do esquecimento... Até já falei sobre isso aqui mesmo neste blog. Mas dois fatos recentes não podem passar assim, em branco, sem que ninguém coloque a boca no trombone (como faz há anos o jornalista José Paulo de Andrade, pioneiro em dar voz a quem precisa ser ouvido).

O primeiro aconteceu em Israel, com Amos Gitai. A Autoridade de Radiofusão do país – queimando um pré-contrato – decidiu cancelar o apoio financeiro para a nova produção do cineasta, “Disengagement”, filmado na França, na Alemanha e em Israel, e com Juliette Binoche e Jeanne Moreau. Segundo um dos integrantes do comitê, o acordo foi rasgado porque Amos Gitai “não é um artista israelense”. Outro dileto participante do grupo afirmou que “o comitê aceitou completamente a alegação de que ele não mora ou cria em Israel. Há muitos cineastas israelenses que precisam muito de nosso apoio. O ARI (Autoridade de Radiofusão de Israel) é uma autoridade israelense e deveria assistir uma grande variedade de artistas israelenses ao invés de ajudar uma só pessoa que não trabalha em Israel, o que é de conhecimento geral. Que filme ele fez em Israel?”. A resposta: “esse é um simples ato de Macartismo. Eu moro em Israel, servi o exército e agora tenho de conseguir um carimbo kosher deles? Até onde isso vai? Tenho nojo de todo esse negócio de israelense, não-israelense. Eu era israelense o suficiente para os sírios, que atiraram no helicóptero em que eu estava durante a Guerra de Yom Kippur.”

Amos nasceu em Haifa, Israel, em 1950. Depois de quase morrer em batalha, decidiu abandonar as armas e trocá-las pelas luzes e câmeras. Por causa da visão crítica da sociedade israelense impressa em seus filmes, ele é classificado, em seu próprio berço, como um “outsider”. Mas tudo foi longe demais. Em um ato grotesco de censura, Amos Gitai foi (pré) julgado, (pré) sentenciado e (pré) condenado. Voltaremos a perseguir Galileus e queimar Brunos? Será que não aprendemos nada?

O segundo fato aconteceu na Itália, durante o Festival de Veneza (bastou o elogio – vejam em “Veneza e A Idade da Terra” – para que tudo fosse por água abaixo – bem apropriado para a cidade. Ang Lee – Bazin está para Hitchcock como Reys está para Lee – venceu o Leão de Ouro, com “Lust, Caution”, e Brian De Palma ganhou o prêmio de melhor diretor com “Redacted”, mais um para a lista dos filmes que não verei de jeito nenhum). A recepção da crítica e de parte do público ao trabalho de Ang Lee é que chamou a minha atenção, e daqui, do outro lado do Atlântico. Muita gente disse que o diretor havia feito as pazes com o público heterossexual. Tudo por causa de “Brokeback Mountain”, transformado em um faroeste gay e, na maioria das vezes, de forma jocosa e desrespeitosa. Apesar de minhas diferenças com Ang Lee, não posso fazer nada além de defendê-lo, e veementemente. Está na hora de pararmos com classificações do tipo “filme gay” ou “filme sobre a diversidade sexual”. Para mim, é um pulinho para chegarmos a “filmes de índios”, “filmes de latinos”, “filmes de mulheres”, “filmes de negros”, “filmes de judeus”. Segregação preconceituosa no meio artístico, que deveria primar pela intelectualidade.

E esse tipo de classificação, de divisão, é prejudicial em qualquer lugar, não apenas nas artes ou no cinema. As cotas para negros logo podem virar cotas para índios, cotas para latinos, cotas para mulheres, cotas para judeus. Não demoraria para alguém ter a idéia de criar espaços especiais para negros e judeus nos ônibus e metrôs, por exemplo. Depois em lugares públicos, como parques, cinemas, teatros, bares e restaurantes. Ou para alguém decidir marcar negros e judeus com um emblema qualquer, que deveria ser vestido sempre, em local visível. Mais uma vez... Será que não aprendemos nada? Isso é racismo oficial. É racismo como política de estado. É nacional-socialismo. Para a fogueira, um passo. Será que é isso que a nossa geração vai deixar para as próximas gerações?

“Brokeback Mountain” não é um “filme gay”. Nem “Felizes Juntos”, de Wong Kar Wai. Nem “Shortbus”, de John Cameron Mitchell. São filmes como quaisquer outros, expressões de seus diretores. Alguns bons, alguns ruins, alguns lindos, alguns poéticos, alguns explícitos, alguns chatos. Mas são filmes e ponto final. Essa classificação reducionista tem como objetivos a provocação, o patrulhamento de idéias, o tolhimento da liberdade.

Chega de intolerância! Somos todos exatamente iguais! Para que deus rezamos, com quem dormimos, qual nossa cor, para que time torcemos, o que fazemos com nossos corpos, em quem votamos, o que vemos, lemos e ouvimos... Nada realmente importa. Essas características todas, essas diferenças, nos definem como seres humanos. Não devem e não podem ser julgadas. Não devem e não podem nos excluir.


Chega de intolerância!


(Trilha Sonora: Siouxsie – Mantaray)